domingo, 26 de abril de 2015

"Quando o Sol brilha": opinião do Blogue "BranMorrighan"



 «Opinião: Eu e os livros temos esta relação em que muitas das vezes são eles que me escolhem a mim e não o contrário. Por vezes até tenho um título em mente que quero ler, mas basta-me passar os olhos por outro que rapidamente a escolha fica feita. Com Quando o Sol Brilha foi mais ou menos assim. Como não é de um género literário que eu leia com frequência, deixei que chegasse a altura em que me ia sentir compelida a lê-lo e aconteceu realmente numa altura propícia, quase propositada. Se num mês perdi duas pessoas que me eram queridas, nesta obra encontrei a partilha da dor que senti com o seu protagonista, deixando assim que as emoções circulassem pelos devidos percursos.
Rui Conceição Silva não é um estreante no nosso universo literário, mas é um estreante no que ao romance diz respeito. Esta sua primeira obra pela Marcador, procede uma anterior, género fantástico, publicada pela Editorial Presença. Na altura, com "Escrito dos Ancestrais" (Campos de Odelberon), sob o pseudónimo Rodrigo McSilva, constatei logo que estávamos perante um escritor cheio de potencial, com uma narrativa estruturada, coerente, pensada e emocionante. Se por um lado o fantástico não é um género apreciado, por outro vemos agora um explodir no interesse perante este Quando o Sol Brilha. 
O Rui que me perdoe, mas acho que é necessário referir que, na minha opinião, só quem já sofreu uma grande perda consegue olhar para a morte de frente e abordá-la como ele o fez neste livro. E ele perdeu, o seu tão amado irmão há já algum tempo. E isso nota-se nas pequenas coisas, naqueles momentos em que é tão difícil preencher os vazios. 
Começamos por conhecer uma vila em tempos idos, uma família que vive dentro dos parâmetros ditos normais em que o marido é operário, a mulher cuida da casa e do jardim, e os filhotes andam na escola. O avô perdeu-se, perdeu-se para um tempo e espaço onde encontrou o seu refúgio após a perda da sua querida amada. Respira, mas são os seus cavalos que lhe despertam ânimo, cavalos esses que mais ninguém os consegue ver, só imaginar. Felismino, o filho, o operário, vai-nos relatando o presente e o passado como se polaroids nos fossem sendo mostradas com uma nostalgia saudosista. A linguagem puxa à tradicional do interior, aos diminutivos (coisa que estranhei, confesso, demasiado tempo a viver na cidade), às paisagens corriqueiras de um tempo em que ainda nem a electricidade tinha chegado às casas.
E depois vem a perda, o vazio, aquele sentimento de amputação em que sabemos que nunca mais seremos os mesmos depois daquele momento. Felismino não é excepção. Entre a bebida e a fuga da realidade, sob os braços de uma mulher, é na reflexão e no sentido de sobrevivência e amor que acaba por renascer. A acção tem um bom ritmo, a eloquência é algo que está inerente na escrita de Rui Conceição Silva e os personagens estão bem explorados e caracterizados. Nem todos iremos concordar com as opções do protagonista, eu certamente me revolvi em algumas fases, mas penso que a compreensão será transversal. Gostei.»

quinta-feira, 16 de abril de 2015

"Quando o Sol brilha": opinião do Blogue "As Leituras do Corvo"



«Edmundo é feliz no seu pequeno mundo. Na aldeia, onde todos se conhecem e conhecem as desventuras dos que os rodeiam, todos falam de Jardins, do velho que vê cavalos num horizonte onde eles não existem, o mesmo velho que olha para Edmundo e o trata por vizinho por já não o reconhecer como filho. Mas, apesar de tudo, há uma estranha tranquilidade na sua vida, no quotidiano do trabalho, do regresso a casa, das horas passadas a ler à luz de um Petromax, do amor do pai, da mulher, da irmã e dos filhos. Até que, um dia, um acidente muda tudo e as perdas começam a suceder-se. Perdido o controlo da sua vida, Edmundo terá de se reencontrar. E de descobrir que, apesar da dor, da perda e dos erros, a vida continua sempre...  
Intimista, quase introspectivo, este é um livro que, narrado pela voz do protagonista, mas sem deixar de abrir portas para a vida das outras personagens, vive tanto de emoções como de acontecimentos e, por isso, olha para a vida de uma maneira diferente. A história é, acima de tudo, a de Edmundo, mas não só. A família, os amigos, os vizinhos são igualmente importantes. E é por isso que a história parte dos pensamentos de Edmundo mas se estende ao pequeno grande mundo da aldeia e das suas gentes, reflectindo tanto a história das pessoas como a dos lugares.
Tendo isto em conta, um dos primeiros elementos a sobressair é precisamente a caracterização da vida na aldeia, naquela como em muitas outras do seu tempo. O meio pequeno onde todos se conhecem e todos se ajudam, mas onde também quase todos falam mal uns dos outros. A estranha solidariedade de olhar com benevolência os caídos, mas sem silenciar as palavras duras no momento em que eles se afastam. A censura em pleno contraste com a aceitação, a convivência amigável contra as guerras que nascem por nada. Um mundo tão pequeno, em suma, mas tão complexo que tudo o que nele existe é importante.
Mas, se o meio é importante, mais o são as pessoas. E é de Edmundo e dos seus, e do que nasce dos sentimentos que neles vivem, que surge a verdadeira alma desta história. Uma história traçada em tristeza, em nostalgia, em dor. Dor ante a perda, tristeza ante o que não volta, nostalgia ao recordar o passado no bem e no mal. Sentimentos que se definem na história nem sempre perfeita das personagens, mas que têm muito de comum com a vida de quem os lê.
O que me leva a ainda um outro ponto forte - e talvez o mais marcante - nesta leitura: a escrita. Há uma estranha harmonia no tom de quase confissão com que o autor dá voz ao seu protagonista. Um toque de poesia, definido por um conjunto de frases marcantes, que contrasta com a aparente simplicidade das vidas e do cenário, e que, assim, aproxima o leitor das personagens, dando aos mais difíceis sentimentos as palavras certas para o transmitir. E de tudo isto, emerge uma estranha beleza, triste como a perda, mas bela como a vida. E cativante. Muitíssimo cativante.
No fim, ficam acima de tudo as emoções e a memória. A memória de uma história que é tão simples e, apesar disso, tão intensa e marcante. A história de uma vida que podia ter sido a de qualquer um e que por isso cativa, surpreende e comove em todos os momentos certos. E que fica na memória, pois claro.»

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Mãe que reza

Mãe. Nada se compara a ela neste mundo. 
Quando eu e o Tózé éramos pequeninos, aguardávamos ansiosos pela chegada da nossa Mãe a casa. Quando chegava, dávamos-lhe um pequeno abraço e íamos logo bisbilhotar a mala dela. Sabíamos que ela nos trazia sempre alguma coisa. Um chocolate, umas bolachas, uma guloseima qualquer. Mas, sobretudo, sabíamos que a nossa Mãe, antes de vir para casa, passava sempre na papelaria do Sr. Manuel Rosa, para nos trazer um livro de banda desenhada. Às vezes, até trazia mais do que um. E era uma festa! O momento mais bonito do dia. Pois, eu e o meu irmão sabíamos que, na mala da nossa mãe, vinham sempre coisas boas para nós. 
No dia seguinte, líamos o livro umas vinte vezes. Como um mapa do tesouro, um pequeno pedaço de alegria. Em cada leitura, parecia ter sempre coisas novas. À tarde, chegava o Zé Batista, o irmão que adotámos, e ficávamos horas a ler livros e a bebericar café com leite, que saboreávamos com montanhas de bolachas Maria com manteiga. Não sabíamos nada dos mundos lá longe. Nem sequer precisávamos deles. Pois tínhamos o nosso mundo, o lugar onde só havia risos e uma singela forma de felicidade. E a minha Mãe era feliz por nos ver felizes.
Hoje, a minha Mãe chora um filho que partiu. Um filho para quem trazia pequenas alegrias dentro da sua mala. Um filho de que tanto se orgulhava. Chora às escondidas, porque, como sempre faz uma mãe, procura o amor de um filho em recordações bonitas. Em memórias de quando ele era pequenino. O seu primeiro dentinho. Os primeiros passos. O dia em que ele foi para a escola. E reza todos os dias para que a sua alma esteja em paz. Pois, nem na morte, uma mãe deixa de cuidar do seu filho. Cuidará sempre dele. Terá sempre uma fotografia dele junto à Nossa Senhora. Nunca deixará apagar-se a luz da lamparina e nunca se esquecerá de rezar as orações. 
E falará com ele, sem que ninguém o saiba. Pois, até ao fim dos tempos, será sempre, e sobretudo, Mãe.


domingo, 23 de novembro de 2014

Pai que chora

O meu Pai vai todos os dias até junto do túmulo do meu irmão TóZé. Esteja o tempo que estiver, mesmo enfrentando o temporal, faz questão de acender uma vela, que deixa num pequeno dispositivo em que a vela se mantém acesa.
Sei que o meu Pai o faz com muito amor, como uma mensagem de enorme saudade pelo seu filho.     
Por vezes, acompanho-o, e ali ficamos os dois a chorar junto do Tózé. A falar com ele em silêncio.
A chuva, fria e injusta, quase não tem importância. Torna-se apenas um pormenor, uma voz quase silenciosa da natureza. E recordo a amizade que o meu irmão tinha pelos dias de chuva, pela suavidade com que os fios de água dançavam com o vento. 
Lembro-me dos dias em que eu e ele ficávamos à janela, vendo a chuva cair sobre a vila e sobre os campos. Éramos pequeninos e empoleirávamo-nos em duas cadeiras, e ficávamos ali, a ver os regos de água acastanhada que pareciam rios, descendo da Madre de Deus. Ainda não havia a estrada para a Escola Secundária, mas apenas um pequeno carreiro entre olivais. 
Eram dias felizes. E a chuva era nossa amiga. 
Hoje, que o TóZé partiu, escuto tristeza nela. Já não é a chuva que tanto amámos. É apenas uma companheira, que se junta a mim e ao meu Pai para chorarmos o amigo que partiu. 
Sei que o meu Pai, como um peregrino, irá sempre visitar o TóZé. Mesmo que o dia tenha cara feia e a chuva pareça um chicote, ele irá sempre. 
Porque, um pai que perde um filho, se fosse necessário, até desafiaria um vulcão, só para estar por momentos com o seu filho. A sós, com ele. 
Sim, o amor de um Pai é uma das maravilhas do mundo. 
Uma das poucas certezas da nossa vida.

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

A chuva segreda-me ternuras

A noite aproxima-se, Figueiró recebe a chuva triste. Os lugares da vila têm rostos do passado, talvez feixes de luz, talvez sombras doces. É aqui que vivo, no meio de todos os rostos da minha vida, os que ainda vivem e os que já partiram, segredando-me ternuras na chuva

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

O meu irmão TóZé foi ver o universo

Faz hoje dois anos que o meu irmão TóZé pôs termo à vida, no dia 9 de Outubro de 2012. 
Desde então, secretamente e discretamente, procuro o meu irmão nos lugares de mim onde ele ainda perdura. Chamo por ele, para que ele volte a preencher os meus dias. Mas o eco do meu chamamento alastra pelos sítios mais tristes da minha alma sem que ele volte. 
E aqui, neste lugar triste onde chamo por ele, e no qual jazem muitas das minhas memórias derrotadas, apenas tenho soldados sem esperança que lutam como podem, empunhando espadas de lágrimas contra a solidão. É um lugar triste, ausente do mundo, e onde vivo como um pedinte, com saudade de ternuras que se afastam no horizonte.
Nesta solidão escondida, a minha noite é a minha trégua, quando o eco do meu chamamento e os ventos de Outono se diluem no primeiro sono. Penso sempre nele antes de adormecer e levo-o para o meu silêncio. Por fim, quando adormeço e fico longe da minha tempestade, no preciso momento em que a noite se mete dentro de mim num bálsamo de silêncio, sinto-me viajante do universo, como ele. 
Pois é triste perder um irmão. Ficar aqui a ver-me silenciar lentamente.
Podia contar-vos a sua história. Falar das maravilhas que existiam no seu coração. 
Mas não sei se isso vos interessaria. 
Apesar de ser a pessoa mais prodigiosa da minha vida, o meu irmão TóZé era uma pessoa simples. Não era um rei, nem um príncipe. Uma estrela de cinema ou um astro da música. Nem sequer era a pessoa mais importante da sua rua, do seu bairro. Morreu quase anónimo, despercebido do mundo, e a sua obra nunca constará na Wikipédia, nos manuais escolares ou nos livros de história.
Mas era o meu irmão. 
E irmão é uma das palavras mais bonitas do universo. Uma palavra acima de Deus. Só comparável a pai, mãe, filho. Uma palavra mais sagrada do que todos os santos e todos os deuses.
Sim, eu tive um irmão.
Chamava-se TóZé e foi um irmão perfeito.
Deixo-vos algumas das suas últimas palavras, do livro “Aprender a recordar”:
«Agora preciso de ir. 
Preciso de regressar a mim, porque os sonhos já não me esperam. Ontem, estive lá, no velho recanto da minha memória, e arrepiei-me com um monte deles inacabados. Já não posso perder mais tempo com os construtores de pessoas. Pois é duro ouvir a noite da desconfiança, como se fosse um riso na escuridão, para um velho palhaço que esgotou os seus números. Cansei-me de todos os que catalogam os outros, de quem não tem jeito para tecer refúgios, de quem gosta de disparar setas na noite.
Ah, se a vida fosse uma lagoa calma! E que as suas águas saltassem das margens, numa correnteza maravilhosa, e que, por maiores que fossem os diques, transbordassem rebeldemente, impetuosamente, espalhando o amor por todos os campos e florestas! Ah, se isso fosse possível, inundar toda a gente com amor! Iríamos então passear pelo pasto verde dos campos e os nossos dias seriam lindos como santuários! E falaríamos apenas das flores, da luz do sol e do vento, da chuva e da beleza das madrugadas. E ficaríamos em silêncio, ouvindo os sons dos pássaros e o murmurar da água nos açudes. E descrever-te-ia o trigo a nascer, esboçaria um ou outro pôr-do-sol e, se possível, a própria primavera, o próprio verão.
Mas hoje, os lagos da existência apenas têm ecos da minha alma. De uma alma que tentou dar mais do que possuía para si. 
Resta-me recordar. Sentado no tempo, ouvindo vozes que se perderam. Agasalhando os meus sonhos em lugares secretos, como um vagabundo, olhando em silêncio as pegadas do tempo. 
Sim, é tempo de partir. Mas também é tempo de ficar. 
De ficar para sempre nos lugares onde fui feliz.»
(TóZé Silva)