quarta-feira, 30 de julho de 2014

Sorrisos refugiados


Naquele início da Primavera, e em todas as manhãs, aparecia um melro na cerejeira dos meus Avós. O seu assobio entoava pelo meu quarto, como se estivesse a subornar-me para o seguir, para me levantar e ir ver o mundo. Ato contínuo, eu olhava à minha volta e via que a cama do meu irmão estava vazia. O TóZé, sempre cheio de alegrias novas, já estava à janela, desejoso de assaltar os campos.
Os nossos pais tinham saído cedinho para o seu ganha-pão e o Avô José Soares já devia andar na horta, inventando vida com as suas mãos. A Avó Maria chamava-nos para beber café com leite e dizia-nos:
— Se forem ter com o Avô à horta, não se esqueçam de levar os bonés. O Sol está muito forte e ainda se constipam.
E lá íamos os dois manos com os bonés na cabeça, ansiosos por ver o Avô a sulfatar as laranjeiras.
Deitados na erva, admirávamos a técnica do Avô, enquanto aviões longínquos desenhavam rastos no céu. Depois, levantávamo-nos para seguir o canto de um grilo nas proximidades, até lhe descobrirmos a toca.
Tínhamos cinco-seis anos e nada do que sonhávamos era ainda clandestino. Todos os gestos eram inocentes e todos os sentimentos eram puros, tão puros que ainda hoje tenho um santuário dentro de mim onde eles perduraram secretamente.
Por vezes, vou até esse santuário e abro as janelas de par em par, para deixar sair o mofo do silêncio. E então, esvoaçam milhares de sorrisos janela fora, desejosos de liberdade.
Ao vê-los voar, sinto saudades dos afectos que guardei e não distribuí.

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