quarta-feira, 6 de agosto de 2014

É aqui por dentro que vivemos


O que sou, perguntaste-me.
E eu explico-te:
Sou um planeta de sangue onde os dias felizes e os dias tristes são quase gémeos.
Um lugar onde os sorrisos e as lágrimas se tornaram amigos inseparáveis e a vida e a morte palavras perdoadas.
Um palpitar de floresta onde vagueiam lobos solitários, uivando ao longe em montanhas de neves cintilantes, chamando por mim, pelo caminhante que procura o rio dos castores e a planície onde cavalgam os cavalos selvagens.
Um lugar selvagem onde os sonhos hibernam como animais e uma floresta onde clarões rebentam no escuro.
Um acordar que não dorme, uma fronteira invisível.
Talvez uma espécie de dia, no qual o Sol é feito de cristais.
Talvez uma forma de noite, na qual fabrico bandeiras e sonhos proscritos, que se agigantam em pequenas brisas que despertam esperanças.
Uma guerra civil dentro de mim.
Uma forma de aula séria, em que explico aos sonhos a necessidade da sobrevivência, embora os sonhos não entendam as estradas onde nos perdemos.
Um mundo demasiado exposto às palavras que queimam, às palavras de guerrilha, por vezes armadas com mísseis terra-ar.
Um qualquer vírus que consome o meu oxigénio e que me leva a pensar que talvez eu seja feito de anti-matéria.
Uma madrugada.
Uma noite sem dormir.
Uma rua deserta, onde os cães se calam, só para ouvirem os meus sonhos a conspirar.
Um horizonte onde os teus olhos são sol e estrela.
Um estranho dentro do teu mundo, pedindo-te que me ouças.
Uma viagem em que hei-de morrer, à beira do universo.
Uma desculpa para respirar.
Uma alegria por existires.  
Sim, é isso que eu sou.
Uma simples maneira de viver por dentro.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

O último lobo


Eis-me aqui,
o lobo poderoso,
nas noites de luar,
uivando pela alcateia
que desapareceu,
que morreu
há muito.

Proibiram-me o sol
e a luz das noites.
Não sonho há muito tempo,
apenas invento fantasmas,
os meus fantasmas,
os meus fantasmas.

Sou como um lobo,
sinto-me um lobo,
abaixo de cão,
abaixo de cão.

Letra de: TóZé Silva, o meu saudoso irmão!

quarta-feira, 30 de julho de 2014

Sorrisos refugiados


Naquele início da Primavera, e em todas as manhãs, aparecia um melro na cerejeira dos meus Avós. O seu assobio entoava pelo meu quarto, como se estivesse a subornar-me para o seguir, para me levantar e ir ver o mundo. Ato contínuo, eu olhava à minha volta e via que a cama do meu irmão estava vazia. O TóZé, sempre cheio de alegrias novas, já estava à janela, desejoso de assaltar os campos.
Os nossos pais tinham saído cedinho para o seu ganha-pão e o Avô José Soares já devia andar na horta, inventando vida com as suas mãos. A Avó Maria chamava-nos para beber café com leite e dizia-nos:
— Se forem ter com o Avô à horta, não se esqueçam de levar os bonés. O Sol está muito forte e ainda se constipam.
E lá íamos os dois manos com os bonés na cabeça, ansiosos por ver o Avô a sulfatar as laranjeiras.
Deitados na erva, admirávamos a técnica do Avô, enquanto aviões longínquos desenhavam rastos no céu. Depois, levantávamo-nos para seguir o canto de um grilo nas proximidades, até lhe descobrirmos a toca.
Tínhamos cinco-seis anos e nada do que sonhávamos era ainda clandestino. Todos os gestos eram inocentes e todos os sentimentos eram puros, tão puros que ainda hoje tenho um santuário dentro de mim onde eles perduraram secretamente.
Por vezes, vou até esse santuário e abro as janelas de par em par, para deixar sair o mofo do silêncio. E então, esvoaçam milhares de sorrisos janela fora, desejosos de liberdade.
Ao vê-los voar, sinto saudades dos afectos que guardei e não distribuí.

terça-feira, 22 de julho de 2014

Lago encantado


Há um lago encantado
algures em mim
onde ecoa o teu nome.
Fica num vale abandonado
tão longe do mundo.
Alguns pensam que sou aquilo que vêem.
Mas eles não ouvem as cascatas
dos sonhos ao entardecer.
Eles não vêem as aves secretas
desejosas de irromper
voando livres pelos céus.
Há um lago encantado
algures em mim
onde brilha a noite escura,
onde os teus olhos no meu silêncio
vão sugerindo essa aventura
de um amanhã por inventar.
E os jardins secretos da minha alma
apenas tu os reconheces,
porque o tempo não separa
as almas cúmplices.
Quero naufragar dando-te a mão!
Sim, há um lago encantado
algures em mim
onde o Sol tem o teu rosto.

quinta-feira, 17 de julho de 2014

A chuva entristece as noites do silêncio


A chuva entristece as noites do silêncio,
e o mundo lá vai nos seus automóveis.
Procuro em mim uma qualquer explicação,
trago-te no silêncio, na solidão.

Olhando através dos céus
nada fazemos senão esperar
que nele passem os anjos.

Oh duro coração,
será tão difícil acreditar?
Oh duro coração,
queres ou não tentar?
É tempo de acabar com a solidão.

Os teus olhos doces
vêm-me desequilibrar.
Sinais no coração,
é já tarde para escapar.

Há formas de estações
que eu descubro sem saber,
lugares onde um dia
gostava de morrer.

Oh duro coração,
toda a gente se cansa um dia,
de correr sem destino
pelas noites do silêncio,
até descobrir a madrugada.

E a todas as noites
sucede o nascer do sol.
O puzzle completa-se
quando os olhos se encontram.
Dizes-me tudo o que se pode dizer num olhar.
Agora sei onde o Sol se esconde.

Oh duro coração,
ainda bem que vieste,
dizer em segredo: «não fiques triste»,
e que eu também posso amar.

Mas a chuva entristece as noites do silêncio.
Sim,
a chuva entristece as noites do silêncio.

Éramos?


sábado, 5 de julho de 2014

Aqui, longe do Éden

Os meus olhos seguem as aves
pedindo-lhes boleia
para o meu íntimo suplicante.
Estou para lá dos vales
moro em todo o mundo
e albergo uma alma questionante.
Sabes por onde andei?
Matando a sede inocentemente
em águas salgadas de mundos distantes
ouvindo canções de busca
desta estranha pergunta que me ensombra a vida.
Pois não passo de um nómada
seguindo as miragens
as lendas que falam de um oásis
trazendo comigo esta coisa incerta e guardada,
que me fere a alma
e me molda a vida.

São longos os dias
e tão breves os anos.
Ainda agora nasci.

sexta-feira, 4 de julho de 2014

A aventura de existir


Será que tu não ouves?
Será que não consegues perscrutar o tempo?
Escuta a ronda dos silêncios
empurrando as memórias
para um poço sem fundo.
Só te resta esbracejar pelo teu acordar.
Será que tu não sentes?
Será que não distingues o silvar dos sonhos?
Escuta os uivos dos anseios
chamando por ti na noite,
na noite calada e longa,
dizendo que para seres feliz tens que os acompanhar.
Será que tu não notas?
Será que não escutas o arfar dos sentidos?
São cânticos dos desejos
que ecoam na noite nua,
linda e abandonada.
Deixa que um pouco de amor suborne o teu silêncio.
Será que não reparas?
Será que não vislumbras a silhueta do tempo?
É a sombra dos relógios
marchando tão compassados,
certos mas apressados,
assustando o teu silêncio, o teu longo esperar.
Será que tu não sabes?
Será que não adivinhas o que nos espera?
É a aventura de existir,
largando sem notar
rumo ao horizonte sem o podermos alcançar.