Faz hoje dois anos que o meu irmão TóZé pôs termo à vida, no dia 9 de Outubro de 2012.
Desde então, secretamente e discretamente, procuro o meu irmão nos lugares de mim onde ele ainda perdura. Chamo por ele, para que ele volte a preencher os meus dias. Mas o eco do meu chamamento alastra pelos sítios mais tristes da minha alma sem que ele volte.
E aqui, neste lugar triste onde chamo por ele, e no qual jazem muitas das minhas memórias derrotadas, apenas tenho soldados sem esperança que lutam como podem, empunhando espadas de lágrimas contra a solidão. É um lugar triste, ausente do mundo, e onde vivo como um pedinte, com saudade de ternuras que se afastam no horizonte.
Nesta solidão escondida, a minha noite é a minha trégua, quando o eco do meu chamamento e os ventos de Outono se diluem no primeiro sono. Penso sempre nele antes de adormecer e levo-o para o meu silêncio. Por fim, quando adormeço e fico longe da minha tempestade, no preciso momento em que a noite se mete dentro de mim num bálsamo de silêncio, sinto-me viajante do universo, como ele.
Pois é triste perder um irmão. Ficar aqui a ver-me silenciar lentamente.
Podia contar-vos a sua história. Falar das maravilhas que existiam no seu coração.
Mas não sei se isso vos interessaria.
Apesar de ser a pessoa mais prodigiosa da minha vida, o meu irmão TóZé era uma pessoa simples. Não era um rei, nem um príncipe. Uma estrela de cinema ou um astro da música. Nem sequer era a pessoa mais importante da sua rua, do seu bairro. Morreu quase anónimo, despercebido do mundo, e a sua obra nunca constará na Wikipédia, nos manuais escolares ou nos livros de história.
Mas era o meu irmão.
E irmão é uma das palavras mais bonitas do universo. Uma palavra acima de Deus. Só comparável a pai, mãe, filho. Uma palavra mais sagrada do que todos os santos e todos os deuses.
Sim, eu tive um irmão.
Chamava-se TóZé e foi um irmão perfeito.
Deixo-vos algumas das suas últimas palavras, do livro “Aprender a recordar”:
«Agora preciso de ir.
Preciso de regressar a mim, porque os sonhos já não me esperam. Ontem, estive lá, no velho recanto da minha memória, e arrepiei-me com um monte deles inacabados. Já não posso perder mais tempo com os construtores de pessoas. Pois é duro ouvir a noite da desconfiança, como se fosse um riso na escuridão, para um velho palhaço que esgotou os seus números. Cansei-me de todos os que catalogam os outros, de quem não tem jeito para tecer refúgios, de quem gosta de disparar setas na noite.
Ah, se a vida fosse uma lagoa calma! E que as suas águas saltassem das margens, numa correnteza maravilhosa, e que, por maiores que fossem os diques, transbordassem rebeldemente, impetuosamente, espalhando o amor por todos os campos e florestas! Ah, se isso fosse possível, inundar toda a gente com amor! Iríamos então passear pelo pasto verde dos campos e os nossos dias seriam lindos como santuários! E falaríamos apenas das flores, da luz do sol e do vento, da chuva e da beleza das madrugadas. E ficaríamos em silêncio, ouvindo os sons dos pássaros e o murmurar da água nos açudes. E descrever-te-ia o trigo a nascer, esboçaria um ou outro pôr-do-sol e, se possível, a própria primavera, o próprio verão.
Mas hoje, os lagos da existência apenas têm ecos da minha alma. De uma alma que tentou dar mais do que possuía para si.
Resta-me recordar. Sentado no tempo, ouvindo vozes que se perderam. Agasalhando os meus sonhos em lugares secretos, como um vagabundo, olhando em silêncio as pegadas do tempo.
Sim, é tempo de partir. Mas também é tempo de ficar.
De ficar para sempre nos lugares onde fui feliz.»
(TóZé Silva)
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