segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Mãe que reza

Mãe. Nada se compara a ela neste mundo. 
Quando eu e o Tózé éramos pequeninos, aguardávamos ansiosos pela chegada da nossa Mãe a casa. Quando chegava, dávamos-lhe um pequeno abraço e íamos logo bisbilhotar a mala dela. Sabíamos que ela nos trazia sempre alguma coisa. Um chocolate, umas bolachas, uma guloseima qualquer. Mas, sobretudo, sabíamos que a nossa Mãe, antes de vir para casa, passava sempre na papelaria do Sr. Manuel Rosa, para nos trazer um livro de banda desenhada. Às vezes, até trazia mais do que um. E era uma festa! O momento mais bonito do dia. Pois, eu e o meu irmão sabíamos que, na mala da nossa mãe, vinham sempre coisas boas para nós. 
No dia seguinte, líamos o livro umas vinte vezes. Como um mapa do tesouro, um pequeno pedaço de alegria. Em cada leitura, parecia ter sempre coisas novas. À tarde, chegava o Zé Batista, o irmão que adotámos, e ficávamos horas a ler livros e a bebericar café com leite, que saboreávamos com montanhas de bolachas Maria com manteiga. Não sabíamos nada dos mundos lá longe. Nem sequer precisávamos deles. Pois tínhamos o nosso mundo, o lugar onde só havia risos e uma singela forma de felicidade. E a minha Mãe era feliz por nos ver felizes.
Hoje, a minha Mãe chora um filho que partiu. Um filho para quem trazia pequenas alegrias dentro da sua mala. Um filho de que tanto se orgulhava. Chora às escondidas, porque, como sempre faz uma mãe, procura o amor de um filho em recordações bonitas. Em memórias de quando ele era pequenino. O seu primeiro dentinho. Os primeiros passos. O dia em que ele foi para a escola. E reza todos os dias para que a sua alma esteja em paz. Pois, nem na morte, uma mãe deixa de cuidar do seu filho. Cuidará sempre dele. Terá sempre uma fotografia dele junto à Nossa Senhora. Nunca deixará apagar-se a luz da lamparina e nunca se esquecerá de rezar as orações. 
E falará com ele, sem que ninguém o saiba. Pois, até ao fim dos tempos, será sempre, e sobretudo, Mãe.


domingo, 23 de novembro de 2014

Pai que chora

O meu Pai vai todos os dias até junto do túmulo do meu irmão TóZé. Esteja o tempo que estiver, mesmo enfrentando o temporal, faz questão de acender uma vela, que deixa num pequeno dispositivo em que a vela se mantém acesa.
Sei que o meu Pai o faz com muito amor, como uma mensagem de enorme saudade pelo seu filho.     
Por vezes, acompanho-o, e ali ficamos os dois a chorar junto do Tózé. A falar com ele em silêncio.
A chuva, fria e injusta, quase não tem importância. Torna-se apenas um pormenor, uma voz quase silenciosa da natureza. E recordo a amizade que o meu irmão tinha pelos dias de chuva, pela suavidade com que os fios de água dançavam com o vento. 
Lembro-me dos dias em que eu e ele ficávamos à janela, vendo a chuva cair sobre a vila e sobre os campos. Éramos pequeninos e empoleirávamo-nos em duas cadeiras, e ficávamos ali, a ver os regos de água acastanhada que pareciam rios, descendo da Madre de Deus. Ainda não havia a estrada para a Escola Secundária, mas apenas um pequeno carreiro entre olivais. 
Eram dias felizes. E a chuva era nossa amiga. 
Hoje, que o TóZé partiu, escuto tristeza nela. Já não é a chuva que tanto amámos. É apenas uma companheira, que se junta a mim e ao meu Pai para chorarmos o amigo que partiu. 
Sei que o meu Pai, como um peregrino, irá sempre visitar o TóZé. Mesmo que o dia tenha cara feia e a chuva pareça um chicote, ele irá sempre. 
Porque, um pai que perde um filho, se fosse necessário, até desafiaria um vulcão, só para estar por momentos com o seu filho. A sós, com ele. 
Sim, o amor de um Pai é uma das maravilhas do mundo. 
Uma das poucas certezas da nossa vida.

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

A chuva segreda-me ternuras

A noite aproxima-se, Figueiró recebe a chuva triste. Os lugares da vila têm rostos do passado, talvez feixes de luz, talvez sombras doces. É aqui que vivo, no meio de todos os rostos da minha vida, os que ainda vivem e os que já partiram, segredando-me ternuras na chuva

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

O meu irmão TóZé foi ver o universo

Faz hoje dois anos que o meu irmão TóZé pôs termo à vida, no dia 9 de Outubro de 2012. 
Desde então, secretamente e discretamente, procuro o meu irmão nos lugares de mim onde ele ainda perdura. Chamo por ele, para que ele volte a preencher os meus dias. Mas o eco do meu chamamento alastra pelos sítios mais tristes da minha alma sem que ele volte. 
E aqui, neste lugar triste onde chamo por ele, e no qual jazem muitas das minhas memórias derrotadas, apenas tenho soldados sem esperança que lutam como podem, empunhando espadas de lágrimas contra a solidão. É um lugar triste, ausente do mundo, e onde vivo como um pedinte, com saudade de ternuras que se afastam no horizonte.
Nesta solidão escondida, a minha noite é a minha trégua, quando o eco do meu chamamento e os ventos de Outono se diluem no primeiro sono. Penso sempre nele antes de adormecer e levo-o para o meu silêncio. Por fim, quando adormeço e fico longe da minha tempestade, no preciso momento em que a noite se mete dentro de mim num bálsamo de silêncio, sinto-me viajante do universo, como ele. 
Pois é triste perder um irmão. Ficar aqui a ver-me silenciar lentamente.
Podia contar-vos a sua história. Falar das maravilhas que existiam no seu coração. 
Mas não sei se isso vos interessaria. 
Apesar de ser a pessoa mais prodigiosa da minha vida, o meu irmão TóZé era uma pessoa simples. Não era um rei, nem um príncipe. Uma estrela de cinema ou um astro da música. Nem sequer era a pessoa mais importante da sua rua, do seu bairro. Morreu quase anónimo, despercebido do mundo, e a sua obra nunca constará na Wikipédia, nos manuais escolares ou nos livros de história.
Mas era o meu irmão. 
E irmão é uma das palavras mais bonitas do universo. Uma palavra acima de Deus. Só comparável a pai, mãe, filho. Uma palavra mais sagrada do que todos os santos e todos os deuses.
Sim, eu tive um irmão.
Chamava-se TóZé e foi um irmão perfeito.
Deixo-vos algumas das suas últimas palavras, do livro “Aprender a recordar”:
«Agora preciso de ir. 
Preciso de regressar a mim, porque os sonhos já não me esperam. Ontem, estive lá, no velho recanto da minha memória, e arrepiei-me com um monte deles inacabados. Já não posso perder mais tempo com os construtores de pessoas. Pois é duro ouvir a noite da desconfiança, como se fosse um riso na escuridão, para um velho palhaço que esgotou os seus números. Cansei-me de todos os que catalogam os outros, de quem não tem jeito para tecer refúgios, de quem gosta de disparar setas na noite.
Ah, se a vida fosse uma lagoa calma! E que as suas águas saltassem das margens, numa correnteza maravilhosa, e que, por maiores que fossem os diques, transbordassem rebeldemente, impetuosamente, espalhando o amor por todos os campos e florestas! Ah, se isso fosse possível, inundar toda a gente com amor! Iríamos então passear pelo pasto verde dos campos e os nossos dias seriam lindos como santuários! E falaríamos apenas das flores, da luz do sol e do vento, da chuva e da beleza das madrugadas. E ficaríamos em silêncio, ouvindo os sons dos pássaros e o murmurar da água nos açudes. E descrever-te-ia o trigo a nascer, esboçaria um ou outro pôr-do-sol e, se possível, a própria primavera, o próprio verão.
Mas hoje, os lagos da existência apenas têm ecos da minha alma. De uma alma que tentou dar mais do que possuía para si. 
Resta-me recordar. Sentado no tempo, ouvindo vozes que se perderam. Agasalhando os meus sonhos em lugares secretos, como um vagabundo, olhando em silêncio as pegadas do tempo. 
Sim, é tempo de partir. Mas também é tempo de ficar. 
De ficar para sempre nos lugares onde fui feliz.»
(TóZé Silva)

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

É aqui por dentro que vivemos


O que sou, perguntaste-me.
E eu explico-te:
Sou um planeta de sangue onde os dias felizes e os dias tristes são quase gémeos.
Um lugar onde os sorrisos e as lágrimas se tornaram amigos inseparáveis e a vida e a morte palavras perdoadas.
Um palpitar de floresta onde vagueiam lobos solitários, uivando ao longe em montanhas de neves cintilantes, chamando por mim, pelo caminhante que procura o rio dos castores e a planície onde cavalgam os cavalos selvagens.
Um lugar selvagem onde os sonhos hibernam como animais e uma floresta onde clarões rebentam no escuro.
Um acordar que não dorme, uma fronteira invisível.
Talvez uma espécie de dia, no qual o Sol é feito de cristais.
Talvez uma forma de noite, na qual fabrico bandeiras e sonhos proscritos, que se agigantam em pequenas brisas que despertam esperanças.
Uma guerra civil dentro de mim.
Uma forma de aula séria, em que explico aos sonhos a necessidade da sobrevivência, embora os sonhos não entendam as estradas onde nos perdemos.
Um mundo demasiado exposto às palavras que queimam, às palavras de guerrilha, por vezes armadas com mísseis terra-ar.
Um qualquer vírus que consome o meu oxigénio e que me leva a pensar que talvez eu seja feito de anti-matéria.
Uma madrugada.
Uma noite sem dormir.
Uma rua deserta, onde os cães se calam, só para ouvirem os meus sonhos a conspirar.
Um horizonte onde os teus olhos são sol e estrela.
Um estranho dentro do teu mundo, pedindo-te que me ouças.
Uma viagem em que hei-de morrer, à beira do universo.
Uma desculpa para respirar.
Uma alegria por existires.  
Sim, é isso que eu sou.
Uma simples maneira de viver por dentro.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

O último lobo


Eis-me aqui,
o lobo poderoso,
nas noites de luar,
uivando pela alcateia
que desapareceu,
que morreu
há muito.

Proibiram-me o sol
e a luz das noites.
Não sonho há muito tempo,
apenas invento fantasmas,
os meus fantasmas,
os meus fantasmas.

Sou como um lobo,
sinto-me um lobo,
abaixo de cão,
abaixo de cão.

Letra de: TóZé Silva, o meu saudoso irmão!

quarta-feira, 30 de julho de 2014

Sorrisos refugiados


Naquele início da Primavera, e em todas as manhãs, aparecia um melro na cerejeira dos meus Avós. O seu assobio entoava pelo meu quarto, como se estivesse a subornar-me para o seguir, para me levantar e ir ver o mundo. Ato contínuo, eu olhava à minha volta e via que a cama do meu irmão estava vazia. O TóZé, sempre cheio de alegrias novas, já estava à janela, desejoso de assaltar os campos.
Os nossos pais tinham saído cedinho para o seu ganha-pão e o Avô José Soares já devia andar na horta, inventando vida com as suas mãos. A Avó Maria chamava-nos para beber café com leite e dizia-nos:
— Se forem ter com o Avô à horta, não se esqueçam de levar os bonés. O Sol está muito forte e ainda se constipam.
E lá íamos os dois manos com os bonés na cabeça, ansiosos por ver o Avô a sulfatar as laranjeiras.
Deitados na erva, admirávamos a técnica do Avô, enquanto aviões longínquos desenhavam rastos no céu. Depois, levantávamo-nos para seguir o canto de um grilo nas proximidades, até lhe descobrirmos a toca.
Tínhamos cinco-seis anos e nada do que sonhávamos era ainda clandestino. Todos os gestos eram inocentes e todos os sentimentos eram puros, tão puros que ainda hoje tenho um santuário dentro de mim onde eles perduraram secretamente.
Por vezes, vou até esse santuário e abro as janelas de par em par, para deixar sair o mofo do silêncio. E então, esvoaçam milhares de sorrisos janela fora, desejosos de liberdade.
Ao vê-los voar, sinto saudades dos afectos que guardei e não distribuí.

terça-feira, 22 de julho de 2014

Lago encantado


Há um lago encantado
algures em mim
onde ecoa o teu nome.
Fica num vale abandonado
tão longe do mundo.
Alguns pensam que sou aquilo que vêem.
Mas eles não ouvem as cascatas
dos sonhos ao entardecer.
Eles não vêem as aves secretas
desejosas de irromper
voando livres pelos céus.
Há um lago encantado
algures em mim
onde brilha a noite escura,
onde os teus olhos no meu silêncio
vão sugerindo essa aventura
de um amanhã por inventar.
E os jardins secretos da minha alma
apenas tu os reconheces,
porque o tempo não separa
as almas cúmplices.
Quero naufragar dando-te a mão!
Sim, há um lago encantado
algures em mim
onde o Sol tem o teu rosto.

quinta-feira, 17 de julho de 2014

A chuva entristece as noites do silêncio


A chuva entristece as noites do silêncio,
e o mundo lá vai nos seus automóveis.
Procuro em mim uma qualquer explicação,
trago-te no silêncio, na solidão.

Olhando através dos céus
nada fazemos senão esperar
que nele passem os anjos.

Oh duro coração,
será tão difícil acreditar?
Oh duro coração,
queres ou não tentar?
É tempo de acabar com a solidão.

Os teus olhos doces
vêm-me desequilibrar.
Sinais no coração,
é já tarde para escapar.

Há formas de estações
que eu descubro sem saber,
lugares onde um dia
gostava de morrer.

Oh duro coração,
toda a gente se cansa um dia,
de correr sem destino
pelas noites do silêncio,
até descobrir a madrugada.

E a todas as noites
sucede o nascer do sol.
O puzzle completa-se
quando os olhos se encontram.
Dizes-me tudo o que se pode dizer num olhar.
Agora sei onde o Sol se esconde.

Oh duro coração,
ainda bem que vieste,
dizer em segredo: «não fiques triste»,
e que eu também posso amar.

Mas a chuva entristece as noites do silêncio.
Sim,
a chuva entristece as noites do silêncio.

Éramos?


sábado, 5 de julho de 2014

Aqui, longe do Éden

Os meus olhos seguem as aves
pedindo-lhes boleia
para o meu íntimo suplicante.
Estou para lá dos vales
moro em todo o mundo
e albergo uma alma questionante.
Sabes por onde andei?
Matando a sede inocentemente
em águas salgadas de mundos distantes
ouvindo canções de busca
desta estranha pergunta que me ensombra a vida.
Pois não passo de um nómada
seguindo as miragens
as lendas que falam de um oásis
trazendo comigo esta coisa incerta e guardada,
que me fere a alma
e me molda a vida.

São longos os dias
e tão breves os anos.
Ainda agora nasci.

sexta-feira, 4 de julho de 2014

A aventura de existir


Será que tu não ouves?
Será que não consegues perscrutar o tempo?
Escuta a ronda dos silêncios
empurrando as memórias
para um poço sem fundo.
Só te resta esbracejar pelo teu acordar.
Será que tu não sentes?
Será que não distingues o silvar dos sonhos?
Escuta os uivos dos anseios
chamando por ti na noite,
na noite calada e longa,
dizendo que para seres feliz tens que os acompanhar.
Será que tu não notas?
Será que não escutas o arfar dos sentidos?
São cânticos dos desejos
que ecoam na noite nua,
linda e abandonada.
Deixa que um pouco de amor suborne o teu silêncio.
Será que não reparas?
Será que não vislumbras a silhueta do tempo?
É a sombra dos relógios
marchando tão compassados,
certos mas apressados,
assustando o teu silêncio, o teu longo esperar.
Será que tu não sabes?
Será que não adivinhas o que nos espera?
É a aventura de existir,
largando sem notar
rumo ao horizonte sem o podermos alcançar.