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terça-feira, 23 de agosto de 2022

Bonita crónica de João da Silva, no jornal "Público"


LIVRO DE CABECEIRA

O vento da Estrela

Os ventos são sempre iguais e sempre diferentes (como as pessoas). O vento da serra não é igual ao vento do mar ou do rio, ao vento da planície ou do deserto, e muito menos ao da cidade. Diferenciam-se na voz, na intensidade, no cheiro, no rumo.

João da Silva

23 de Agosto de 2022, 7:56

Ao fim de meia hora de caminho, sentei-me no meio da estrada abraçado às pernas e com o queixo pousado nos joelhos. Não me cruzei com vivalma desde que comecei a caminhada a partir de Gouveia, a Princesa da Serra, em direção a Folgosinho. Sempre a subir na ida, sempre a descer no regresso. Se tudo na vida fosse assim tão certo. Fechei os olhos para ouvir o vento. À lembrança, chegaram-me as palavras de Alberto Caeiro: "Outras vezes oiço passar o vento, | E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido." A dada altura, senti uma presença junto a mim. Resisti a abrir os olhos, acreditando tratar-se do espírito da serra que me invadia. Respirei fundo, preenchendo-me daquele vento ímpar. Os ventos são sempre iguais e sempre diferentes (como as pessoas). O vento da serra não é igual ao vento do mar ou do rio, ao vento da planície ou do deserto, e muito menos ao da cidade. Diferenciam-se na voz, na intensidade, no cheiro, no rumo. Aproximam-se no livre-arbítrio. "O vento sopra onde quer, e ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem, nem para onde vai; assim é todo aquele que é nascido do Espírito" (João 3:3-8).

Quando abri os olhos, um enorme cão serra da Estrela mirava-me a menos de meio metro. Chegara silencioso, certamente intrigado por ver-me imóvel no meio da estrada, e aproximou-se para me cheirar. Mantive-me quieto, sentindo-lhe também o cheiro, até que se desinteressou e seguiu estrada abaixo. Voltei a fechar os olhos. Pensei no cão e na lembrança já enraizada da sua brevíssima presença. Nunca é a duração do evento que deixa marcas.

Desde miúdo que gosto de andar ao vento, ao contrário da maioria das pessoas que conheço, que preferem apontar-lhe os defeitos. Que os tem, e muitos. Mas eu sempre preferi olhar para o seu sentido figurado: vassouradas que separam o trigo do joio, levando o supérfluo e o lixo, separando o essencial. Discutível, claro. O contrário também sucede – poucas coisas na vida são tão "pão, pão, queijo, queijo" como as subidas e as descidas de uma serra. E, por vezes, o vento leva mesmo para longe aquilo que é importante, a saúde, a alegria ou o amor, deixando o superficial, a doença, a tristeza, o desamor.

Lembro-me de gostar de correr na rua quando estava vento. "Não vás lá para fora, João, está muito vento", ralhava a minha mãe. "É por isso mesmo que vou", pensava eu, correndo contra o vento com as lágrimas a fugirem dos olhos e o cabelo penteado pela ventania. Quando me cansava, montava-me às cavalitas do vento e voava.

"Hoje, o maior receio dos pastores é o de não ter o que dar de comer às cabras e ovelhas. A seca e o fogo atacaram com força", oiço no noticiário enquanto amanho um tomate. Sabendo o que ia encontrar no ecrã, enchi-me de coragem e voltei-me para encarar um cenário de destruição que me atordoou a alma. Interroguei-me, certo de não obter resposta: "Porquê?" Já de costas voltadas para o ecrã, ouvi o lamento de um bombeiro que assistiu ao fogo atravessar uma quinta em Gonçalo, distrito da Guarda: "O vento estava muito forte e a situação descontrolou-se, não pudemos fazer nada."

Nessa quinta, para escaparem à fúria do fogo, um homem e uma mulher tiveram de mergulhar com os filhos num tanque. Miguel, um menino de 10 anos, contou na primeira pessoa o que o bombeiro viu ao longe: "Foi um momento muito difícil. Houve uma parte que eu nem consigo explicar... Estava dentro de água, com as chamas por cima de mim e bolinhas pequeninas do fogo a saltar pelos terrenos..." E naquele instante, odiei o vento e a sua rebeldia. "Pois, naquele planalto onde moravam ventos, de pouco adiantava gritar as leis dos homens, porquanto aquele era o reino das coisas que não manipulamos", diz-nos Rui Conceição Silva, em Deste silêncio em mim (2021, Visgarolho Editora), livro que calhou estar a ler quando a serra da Estrela ardeu. O vento é uma personagem secundária que percorre todo o manuscrito de Rui Conceição Silva, que nos mostra as suas facetas, feitios e peculiaridades, virtudes e defeitos, enquanto nos relata a história de Rodrigo, um rapaz nascido e criado na montanha, que sonha fugir à vida de pastor para conhecer o mundo. Através de Rodrigo e de outras personagens marcantes, descobrimos silêncios, angústias, saudade, amor e a solidão da montanha, mas recordamos também que a solidão pode estar em toda a parte, mesmo quando estamos rodeados de gente.

Refletindo nas imagens da serra queimada e tentando antecipar o que encontrarei quando regressar a Gouveia e caminhar pela serra, voltei a tirar o livro de Rui Conceição Silva da estante e folheei-o, como quem procura um amigo em busca de conselhos. E o Rui, que não conheço, falou-me assim: "Chega sempre o momento em que cada um de nós se detém e pergunta, numa hora mais triste: 'O que será o amanhã? Conseguirei suportá-lo?' E essa pergunta traz-nos sempre um medo com rosto, o nosso próprio rosto, que tenta voltar às antigas feições, quando olhava em frente sem medo do futuro. Porque há notícias assim: mais do que o presente, assustam os dias vindouros. As nuvens instalam-se em nós, ensombrando os olhares que deitamos aos amanhãs desconhecidos, que já nascem semidestruídos. E que força haverá em todos nós, que nos leva a suportar todas as adversidades? Talvez seja pelas nossas certezas, pelas palavras já conquistadas nos nossos corações. Porque, quanto mais simples nos tornarmos, menos estaremos dependentes do jogo de sorte que é a nossa vida. São as grandes expectativas que nos derrubam."

Com o livro escancarado, relembro com clareza e paixão uma fria manhã de janeiro em que caminhava pelos lameiros que ladeiam as estradas desertas entre Gouveia e Folgosinho, observando o feno a dançar com o vento que me fustigava a pele do rosto. Fecho os olhos para o sentir e aceno ao milhafre que vigia todos os meus movimentos, desenhando círculos por cima de mim. Em seguida, sorrio ao recordar a ocasião em que, distraído a olhar o horizonte, fui surpreendido pelo inesquecível som do bater de dezenas de asas de perdizes rompendo entre as giestas. Sons que ficam. Como o do vento a entrar em nós. Aquilo que percecionamos através dos olhos reforça a barreira intransponível que existe entre a nossa mente e o que é exterior a nós, que está lá fora, num espaço onde as coisas são, mas nós não somos. Quando ouvimos, participamos, imergimos numa realidade indivisível, sem fronteiras, fluida. Somos o canto dos pássaros, o latido dos cães, o quebrar das ondas na praia, a gargalhada da criança, somos tudo o que ouvimos, somos vento. Ao ouvir o vento com atenção, podemos escutar o espírito dos nossos ancestrais. O que quer que o vento leve ou traga, seja alegria ou desgraça, é a vida a acontecer. Somos nós, o universo, tudo.

"Os espíritos são como o vento, eles estão contigo onde quer que tu vás. Consegues ver o vento? Consegues segurá-lo na tua mão? Os espíritos caminham contigo, fazes parte da sua família", disse o Régulo de Tambarara, localidade do distrito de Gorongosa, em Moçambique.

Termino, propondo um desafio: Depois de ler estas derradeiras linhas, vá escutar o vento, nem que sopre apenas uma leve brisa. Feche os olhos e interrogue-se: "O que me diz?" Nada? Persista. É importante escutar o sopro do vento (escutarmo-nos). Só para ouvi-lo, vale a pena ter nascido.

terça-feira, 15 de junho de 2021

Uma bela opinião do blogue de referência "A Biblioteca da João"

http://abibliotecadajoao.blogspot.com/2021/06/opiniao-rui-conceicao-silva-deste.html

Quem procura um livro assente nas raizes portuguesas e rurais, este é o livro certo. Rui Conceição Silva faz aqui um retrato do Portugal profundo, recorrendo a uma escrita exímia. É um deleite de ler!

Rodrigo é um jovem habitante de uma aldeia perdida no nosso mapa. Vive com o seu avô, os pais e os irmãos numa casa bastante pobre, reflexo da vida simples que levam. O seu destino está, à partida, traçado: seguir os passos do seu pai e ser o próximo pastor da família. E assim será, quando faz 12 anos, o pai começa a transmitir-lhe os seus conhecimentos, de como e para onde conduzir o rebanho. Assim que Rodrigo toma a seu cargo esta tarefa, percebe o quão grande é o silêncio e o isolamento inerentes a esta profissão, mas que ele aceita por desconhecer as alternativas. Até ao dia... em que um estranho homem, com o seu tambor, toca para ninguém no meio das montanhas. Incutido pela curiosidade, Rodrigo aproxima-se deste estranho sucessivas vezes até chegar à fala com ele. Descobre então que o Sr. João vive na cidade mas é ali, no meio do nada, que comunica com quem já partiu, através do seu tambor. Será também o Sr. João a despertar em Rodrigo a necessidade de procurar outra vida. Face a certos acontecimentos trágicos, Rodrigo decide largar tudo e rumar ao desconhecido, para a cidade grande. Mas será ele mais feliz no meio do barulho, do movimento, das pessoas que não se conhecem ou na “sua” montanha, embora totalmente isolado, mas acompanhado dos seus silêncios?

Este é um livro para ler devagar, porque a escrita assim o exíge. Exige ser apreciada! Cada frase foi meticulosamente construída, para formar um todo quase poético. Achei-a de uma beleza impar e que dá gosto ler. Se a forma é fantástica, o conteúdo não o é menos. Acredito que este tenha sido o retrato de vida de uma ou duas gerações atrás, os avós de hoje que nasceram nas lindas aldeias do nosso país mas que sentiram o apelo das cidades, acabando por contribuir para a desertificação do interior.

É uma história de vida, real, sem contos de fadas nem finais felizes. É um exemplo de vida de quem teve de deixar famílias para trás em busca de um sonho, que sofreu a distância e a culpa da ausência, em busca de melhor. Uma história muito verdadeira!

terça-feira, 31 de julho de 2018

Uma bela opinião do blogue de referência "A Biblioteca da João"

 http://abibliotecadajoao.blogspot.com/2018/07/opiniao-rui-conceicao-silva-dei-o-teu.html

Aqui está um livro que me surpreendeu pela positiva! Confesso que não acho a sua capa muito apelativa, mas a sinopse interessou-me e, depois de ler opiniões positivas e de ter tido a oportunidade de conhecer o autor na Feira do Livro deste ano, não podia deixar de o ler. Ainda bem que o fiz! Numa narrativa cuidada, Rui Conceição Silva conta-nos parte da história de Figueiró dos Vinhos, no final do século XIX e início do século XX.
Bem escrito, com personagens bastante interessantes, embora eu não tenha a certeza se são reais ou baseadas em pessoas reais (o autor fala sobre José Malhoa e Manuel Henrique Pinto, dois pintores consagrados que descobriram a beleza daquele local e e acabaram por terminar a sua vida lá).
A história é narrada na primeira pessoa, por Joaquim, o professor da aldeia, desde que era jovem adulto até à sua velhice. Ao longo destes anos, vamos conhecendo a sua vida em simultâneo com a de várias pessoas da aldeia. Vamos acompanhar o seu amor impossível por Olinda, que também o ama, mas que já foi prometida a outro homem em troca da cobrança de uma dívida do pai dela. Fala-nos das paisagens, da vida no campo, dos sons e das cores (as cores que tanto encantaram José Malhoa) e das inúmeras caminhadas que Joaquim fez com os seus amigos pintores. Achei muito interessante como o autor incluiu na narrativa algumas invenções da época, como o telefone ou o automóvel.
A leitura deste livro é uma viagem calma e suave que me proporcionou horas de leitura muito agradáveis. Por curiosidade fui pesquisar sobre algumas obras de José Malhoa e da casa que acabou por construir e denominou de "O Casulo". Tudo existe e é deveras interessante. Este é um livro para desfrutar e conhecer um pouco do nosso interior que tanta riqueza tem para oferecer.