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1)
O que é, para si, escrever?
É uma
necessidade interior de criar e de me reinventar. Certamente idêntica às dos
pintores, dos escultores, dos músicos, de todos os criadores de arte. Não é um
hobby, pois causa alguma angústia e é um processo muito solitário. Mas creio
que o destino de um escritor é ateimar até morrer. Ateimar nas palavras em
busca de mais um livro. Será assim até ao fim.
2)
Quando percebeu que queria ser escritor?
Desde
jovem que sonhava um dia escrever romances. Mas não era uma necessidade
interior. Só se manifestou essa necessidade após o suicídio do meu irmão Tózé,
em 2012. Quando o Sol Brilha resultou
da urgência de falar da perda de alguém que amamos. Como uma espécie de
absolvição ou de redenção. Eu amava muito o meu irmão, tínhamos quase a mesma
idade e costumávamos dizer que éramos gémeos com catorze meses de diferença.
Era o meu melhor amigo, o meu confidente. Hoje, todos os meus livros são para
ele. Pois eu sei que ele está algures no silêncio. Sinto-o muitas vezes comigo.
Os irmãos nunca deixam de existir.
3)
Escreve apenas pelo prazer da escrita (se depois
for publicado tanto melhor) ou já com o objectivo de publicar o livro?
Escrevo,
não tanto pelo prazer, mas por essa necessidade interior. E, quando escrevo, não
penso na publicação. Vou construindo o rascunho ao sabor das palavras, sem
saber se tem ou não valor. Só quando o termino, e deduzo que possa valer a pena
ser publicado, me preocupo então em fazer uma revisão o mais séria possível,
por respeito aos eventuais leitores. Nessa fase, sim, começo a pensar numa
hipotética publicação. Mas, enquanto escrevo, sigo apenas essa necessidade
interior de criar.
4)
Sempre que começa a escrever um novo livro, de
onde surgem as ideias?
Por
norma, surgem de um acontecimento simples. No “Quando o Sol Brilha”, lembro-me
de ter ido ao Gerês com a minha mulher e os meus filhos e de, a certa altura, ao
olhar para o horizonte, me ter convencido de que tinha avistado os garranos
selvagens, que tanto queria ver. Mas foi apenas uma visão. Uma simples ilusão
de óptica. Por sorte, dois dias depois, acabei por conseguir vê-los e ficar
maravilhado. Mas fixei essa ideia, a de ter visto primeiro os cavalos na minha
imaginação. E daí o velhote do meu livro, que via cavalos que mais ninguém via.
No “Dei o Teu Nome às Estrelas”, tudo começou quando li um artigo, que falava
dos quadros desaparecidos do pintor José Malhoa. E imaginei um quadro que ele tivesse
pintado e que se tivesse perdido no tempo. Depois, como ele viveu cinquenta
anos aqui em Figueiró, onde inclusive morreu, percebi que era sobre isso que
queria falar. Dele e da sua amizade com Manuel Henrique Pinto, uma amizade
quase lendária na minha terra, neste confim do mundo, de infinita beleza e
triste. No “Deste Silêncio em Mim” tudo começou quando vi um vídeo de um grande
amigo meu, tocando tambor para a montanha. Sozinho, tocando para os ancestrais,
sabendo que eles o escutavam. Creio que isso é um bem inestimável, saber que
Deus está em tudo o que existe e que a morte não é o fim. Que a alma é apenas
energia condensada, que se liberta quando morremos, para se fundir com o
Universo. E esse panteísmo fascina-me, o sermos partes de um todo universal,
presente na natureza e em todas as formas de vida. Nesse dia, onde outros viram
um vídeo, eu vi um possível livro.
5)
Descreva-nos, por favor, um pouco o seu processo
de escrita.
Confesso
que é um pouco lento. Infelizmente, nunca senti um “cataclismo da alma”, como o
que atacou Gabriel Garcia Marquez
antes de escrever o Cem Anos de Solidão.
Não tenho esse dom. Sei que nunca o terei. Sou apenas uma pequena migalha na
Literatura, que tem de trabalhar muito mentalmente, para construir textos que
justifiquem a eventual publicação do que escreve. Daí que, até agora, só tenha
publicado livros de três em três anos. Normalmente, escrevo à noite, quando o
silêncio é mais abundante. Tenho a sorte de viver numa aldeia, que me
proporciona essa tranquilidade. Mas o meu processo de escrita é realmente lento.
O primeiro capítulo é sempre uma luta. Escrevo-o e reescrevo-o várias vezes.
Por vezes, deixo-o mesmo para mais tarde, e dou por mim a escrever o segundo,
terceiro, quarto capítulo. Mas eu creio que o mais importante é irmos
escrevendo. E encararmos cada capítulo como parte de um todo.
6)
Faz planos antes de começar a escrever um livro?
Planos
escritos ou esquematizados, não. Mentalmente, sim, um pouco. Mas já sei que, a
certa altura do rascunho, as personagens vão para onde querem. E eu gosto
disso, de o rascunho ir para onde tem de ir. A única coisa que respeito é a mensagem
base. Acho que isso é fundamental. Mas gosto das ideias que vão surgindo. Do
não estar fechado em ideias estanques.
7)
Quanto tempo leva a escrever um livro?
Cerca
de sete-oito meses. Depois, mais três ou quatro a trabalhá-lo. Apesar de já ter
58 anos, não tenho pressa. Não sinto essa sofreguidão de ver livros publicados.
Por exemplo, agora estou de volta de um rascunho, e passo dias a pensar mais
nele do que a escrevê-lo. Apesar de já ter partes escritas, ainda estou a
tentar integrar-me naquele espaço, naquele tempo. O “estar lá”, e viver como
que uma vida paralela, faz-me andar nas ruas distraído. Acho que a minha
família e as pessoas da minha terra já estão habituadas a ver-me assim, a
pensar num rascunho e com a cabeça no ar.
8)
Quando a história se desvia do plano inicial,
pode obrigar a rever e reescrever partes. É mais difícil reescrever ou escrever
pela primeira vez?
É mais
difícil escrever pela primeira vez. Criar será sempre mais difícil do que
aprimorar. Talvez por isso, reescrever certas partes dá-me até algum prazer,
como se fosse um pintor retocando um quadro. Mas esse reescrever é também uma
oportunidade de reflectir sobre partes do texto, tendo sempre presente que, por
vezes, é preciso apagar muito do que se escreve. Que isso faz parte do
processo.
9)
Sente que as personagens lideram o processo de
escrita? Ou é da total responsabilidade do autor?
Como
já disse anteriormente, as personagens, a certa altura, parecem soltar-se. Pode
parecer estranho para quem não lê, ou lê pouco. Mas, para os leitores que leem
muito, esta é uma verdade que facilmente aceitam. Às vezes, até parece que
certa personagem contradiz o que dela se escreveu anteriormente. Mas as
personagens são como nós, que também mudamos consoante a vida. E, nestes meus cinquenta
e oito anos, já vi muita gente forte que se perdeu, e muita gente frágil que se
agigantou. Na verdade, só sendo postos à prova percebemos a nossa força ou as
nossas fraquezas. Assim são, muitas vezes, as personagens dos livros.
10)
Vamos ter livro novo? Se sim, para breve?
Para
qualquer escritor, há sempre um manuscrito que se está a escrever. Mas escrever
não significa necessariamente publicar. Sobretudo no meu caso, que não sei o
que é ter um best-seller. Não tenho essa garantia, esse horizonte. Ainda assim,
só tentarei publicar um novo livro se estiver satisfeito com o rascunho. E sei
que, mesmo após a sua conclusão, dependerei muito da mestria de quem o vai
editar. Por exemplo, o ”Deste silêncio em Mim” foi decisivamente melhorado pelo
Rui Miguel Almeida, editor da Visgarolho. Além de um incrível leitor e de um
grande escritor, o Rui é um extraordinário editor/revisor. Sem ele, o livro não
teria a mesma qualidade.
Mas
não, não tenho prazo para um novo livro. Acontecerá quando tiver de acontecer.
11)
Quais são os autores que o inspiram?
Muitos.
Mas posso indicar alguns. Como Gabriel Garcia Marquez. Cem Anos de Solidão e Amor
nos Tempos de Cólera exercem um grande fascínio sobre mim. Grande parte dos
seus livros, bem como Llano em Chamas
e Pedro Páramo, de Juan Rulfo, percursor
do realismo mágico, são dos que mais reli até hoje. Gosto também muito de Luis Sepúlveda
e de Primo Levi. Se Isto é um Homem foi
dos livros que mais me marcou até hoje, por todas as atrocidades que o ser
humano pode fazer ao seu semelhante. Noutro registo, admiro sobremaneira o Tolkien,
por todo o legendarium que criou,
desde o Silmarillion até ao Senhor dos Anéis. Dos autores portugueses,
os que mais admiro são Miguel Torga, Camilo Castelo Branco, Almeida Garrett, José
Saramago, Maria Judite de Carvalho, Alves Redol e Eça de Queirós. E tenho um
carinho especial por Júlio Dinis, pois foi o primeiro autor português que
“conheci” na minha juventude, e a quem gosto sempre de voltar. Dos
contemporâneos, admiro muito o Valter Hugo Mãe e o José Luís Peixoto. E estou
agora a descobrir a Célia Correia Loureiro, que acho que vai ter um grande
futuro. Mas ficam muitos por indicar, o que é sempre injusto. Ademais, também
gosto de outras formas de literatura. Como a banda desenhada, por exemplo. Sou
um grande fã do René Goscinny, co-autor do Astérix
e do Lucky Luke. Adoro aquele tipo de
humor.
12)
O que gosta de fazer quando não está a escrever?
Ler,
passear, ver filmes e desporto na televisão, visitar os meus pais, ir à
Biblioteca Municipal. E adoro estar com a minha mulher e com os meus filhos.
Falamos e rimo-nos muito. Mas a maior maravilha da minha vida é brincar com os
meus netos.
13)
O que é que os livros (os seus e os dos outros
autores) lhe dão?
Dão-me
novos mundos e a possibilidade de viver mil vidas. O prémio de me maravilhar
com frases incríveis e de poder ler histórias fascinantes. A ventura de perceber
novas maneiras de pensar e a possibilidade de descobrir outras formas de ver o
mundo e a vida. No maravilhoso filme Shadowlands,
sobre C.S. Lewis, há nele uma frase muito bonita: “Lemos para sabermos que não
estamos sozinhos”. Um livro é sempre uma boa companhia.
14)
Enquanto leitor, qual o seu género favorito?
Gosto,
sobretudo, de romances, de memórias e de biografias. Mas também gosto de
poesia, sobretudo a de Eugénio de Andrade e a de Sophia de Mello Breyner. Creio
que, sem me aperceber, todos os poemas que li desde os meus catorze-quinze anos,
me ajudaram a ter uma espécie de prosa poética. Dos muitos géneros que existem,
confesso que não sou grande fã de terror e de suspense.
15)
Escreveria um livro de um género fora da sua
zona de conforto? Um livro de ficção cientifica, por exemplo?
A meu
ver, e no que concerne especificamente à escrita, ficar na zona de conforto é
algo natural. Todos passamos anos, por vezes décadas, a criar o nosso estilo e
a nossa forma de estar e, abdicar disso, pode não ser benéfico. Hoje em dia,
fala-se da zona de conforto como se fosse uma coisa má ou impeditiva, como uma
espécie de fraqueza. Mas, se estamos bem e somos felizes assim, para quê mudar?
Nem todas as mudanças são salutares. No meu caso, gosto do que escrevo. Continuar
é o meu caminho. Mas compreendo que muitos autores precisem de novos desafios e
de novos horizontes. Admiro-os por isso. Mas, admirar uma pessoa, não significa
necessariamente que queiramos ser como ela.
16)
Como é que os seus familiares, amigos e colegas
de trabalho reagem a esta sua faceta de escritor?
Para
os amigos, acho que sou o cromo que escreve livros. Mas já não estranham. Sabem
que faz parte de mim, da mesma maneira que o meu jeito tímido e meio trapalhão.
Para a minha família, eu sou apenas o Rui. Eles sabem que o facto de escrever
livros não é o mais importante para mim. Que essa não é a melhor parte de mim. Na
verdade, tento apenas ser boa pessoa e ultrapassar os limites em que nasci. Os
meus avós eram lavradores e não sabiam ler. O meu pai foi um simples operário e
a minha mãe funcionária dos Correios. Pela lógica, eu nunca seria escritor.
Mas, tudo o que eles me ensinaram, com a sua sabedoria simples e repleta de
amor triste, é que fez de mim o que sou. Hoje, apercebo-me de que toda aquela
ternura e tristeza desaguam agora nos meus livros.
17)
Para finalizar, fale-nos um pouco dos seus
livros publicados. Qual é o seu favorito? Qual foi mais difícil de escrever?
Acho
que não tenho preferências. Todos ocupam um lugar especial no meu peito. Talvez
o mais difícil de escrever tenha sido o Quando
o Sol Brilha. Era o primeiro romance e ainda procurava a minha voz. Espero
tê-la encontrado.
· Como nota final,
quero agradecer-vos, Maria João Covas e Maria João Diogo, por esta entrevista e
por ser o autor do mês no vosso
grupo. É uma honra muito grande. Sou uma pessoa simples, e gestos como estes
agigantam-se dentro de mim como lendas inesquecíveis. E agradecer tudo o que
têm feito pela Literatura e pelos nossos autores. São pessoas como vós, que me
fazem acreditar na bondade e na generosidade do ser humano. Que valerá sempre a
pena investir num abraço, como este que vos deixo.